Os três prazeres da narrativa nos games

.

"Um dos primeiros e mais sólidos esforços de explicar a origem do prazer de fruir uma narrativa interativa foi feito por Janet Murray em Hamlet no Holodeck. De acordo com Murray, as narrativas possibilitadas pelo computador (entendido num sentido genérico que engloba os videogames, a realidade virtual e todo tipo de narrativa digital interativa) acarretam três prazeres característicos que dão continuidade às tradições narrativas anteriores, mas que, sob outros aspectos, são únicos, especialmente quando combinados entre si: imersão, agência e transformação. A tranformação se refere à capacidade de por em movimento narrativas com múltiplos enredos e papeis e que podem mudar de forma à medida que são contadas e afetadas pela participação do receptor. Embora esse aspecto possa ser encontrado em muitos jogos eletrônicos, tais como os MMORPGs (World of Warcraft, Age of Conan, Everquest etc.), não é o caso de Prince of Persia, um jogo linear single-player, feito para ser jogado sozinho e no controle de um único personagem. Focarei, portanto, nos outros dois aspectos.
A imersão não é novidade. Murray a define como “a experiência de ser transportado para um lugar primorosamente simulado (…), independentemente do conteúdo da fantasia.” É o que as descrições e ilustrações dos livros e a produção de arte dos palcos e estúdios de cinema tem feito há séculos. Corretamente estimulada, nossa mente devora fantasias e se entrega totalmente a elas, desde que o transe imersivo não seja arruinado por algo que nos faça lembrar que aquilo é apenas representação. É paradoxal: para seguir acreditando num mundo de fantasia e sentir-se imerso nele, é necessário afastá-lo um pouco para preservá-lo da contaminação da realidade. Isso fica claro quando a chamada “quarta parede”, termo que os dramaturgos cunharam para se referir à separação entre o palco e a plateia, é violada. Quando um ator busca a participação do público ou um personagem de um filme olha para a câmera e diz algo como “isso é só cinema”, o transe imersivo é fraturado. A arte moderna se refestela brincando com esse tipo de coisa, com resultados variados.
No mundo dos jogos eletrônicos, contudo, as regras parecem ser outras. Jogos são participativos por definição. Sem nossa intervenção voluntária constante, eles não acontecem. Quando o assunto é envolvimento narrativo, participação e imersão andam de mãos dadas nos videogames. A participação não é uma exceção à regra; ela é a regra. Suspender a participação do jogador é o que rompe a imersão num videogame. Nenhum jogador gosta de ser guiado por um cenário ou submetido a longas sequências não-interativas. Ele quer apertar botões, escolher para onde ir, disparar armas de plástico contra a tela ou golpear com o controle sensível a movimentos do Nintendo Wii como se fosse uma raquete ou espada e ser constantemente confrontado com um mundo que precisa decifrar, solucionar e modificar ativamente.
Quando o jogador consegue agir nesse mundo de fantasia e desfrutar do resultado dessas ações de maneira prazerosa, ocorre o que Murray denomina agência. Você olha para o alto e enxerga um fabuloso detalhe do cenário somente porque decidiu olhar para o alto e executou o comando correspondente no joystick. Você dá uma raquetada com seu Wiimote e a bola virtual vai na direção que você pretendia e Rá!, você acaba de quebrar o saque de seu amigo otário. Você dá um tiro no tonel de óleo diesel e ele explode com uma animação vibrante e um som crocante de explosão. Bum! De quebra, você lançou aos ares o corpo de um inimigo oculto, que voa em chamas e ricocheteia numa parede, morto, fora do seu caminho. Você fez mira e pressionou um único botão; a resposta da arma foi imediata, o ruído do disparo fez cócegas no ouvido de tão realista, o furo apareceu exatamente no ponto do tonel em que você tinha mirado, e todas essas coisas sensacionais aconteceram e agora você está mais perto de salvar a própria pele, ou o mundo, ou de resgatar sua amada, ou de destruir tudo sem nenhum motivo. Não importa o objetivo, e sim o prazer da agência. O mundo reagiu deliciosamente à sua intervenção. Eu fiz isso."
  
Trecho do artigo de Daniel Galera publicado na revista Serrote.

Powered By Blogger